terça-feira, 25 de outubro de 2011

Pra frente, Grécia!

Eu cresci, e acho que muitas outras pessoas também, lendo e ouvindo que o mundo deve à Grécia os fundamentos da civilização como a conhecemos. Não só penso que é verdade isso: tenho a impressão de que se ficarmos apenas no plano do legado cultural, e mesmo nos restringindo nesse campo somente ao papel provavelmente sem rival da mitologia grega na formação do pensamento moderno, essa dívida já seria gigantesca. Mas tem mais, muito mais. Por exemplo, as Olimpíadas. Não é exagero afirmar que um mísero porcentual de tudo que Nike, Coca-cola, Adidas, Umbro, fora governos às vezes mal-intencionados, já lucraram em cima desse grande invento dos helênicos seria suficiente para deixá-los nadando em dinheiro. Sobre os últimos, aliás, poderia me referir a um certo e repulsivo bigodinho em 1936, mas seria grosseiro e injusto com uma senhora loura e a maioria do povo que ela representa, os quais mencionarei algumas linhas adiante. Tem, ainda, tudo o que eles fizeram na filosofia, na literatura, na ciência política, na matemática, no teatro etc etc etc. Por isso, se eu tivesse a oportunidade, sugeriria aos ricaços que estão se colocando à frente do problemão em que se tornou a crise grega, como Nicolas Sarkozy e Angela Merkel (essa governa um país podre de rico, mas de passado não completamente suntuoso, como é o grego), que parem de falar abobrinhas e usem seu enorme poder para articular um esforço especial dos manda-chuvas mundiais e pagar a dívida histórica com o país de Aristóteles, evitando a humilhação planetária e em tempo real a que ele vem sendo submetido - a internet disponibiliza informações detalhadas sobre cada novo centavo de dracma que a Grécia passa a dever, minuto a minuto. O presidente da China já se propôs a ajudar, e não somente a Grécia, mas também Portugal e outros que também estão na pindaíba. Tem 3 trilhões de dólares na conta-poupança, eu nem sabia que existia tanto dinheiro assim no mundo guardado num só lugar. Mas exigiu que os europeus esnobes, porém falidos, desçam do salto e reconheçam que os ricos, e portanto quem manda, agora são eles. Acho muito justo. Dilma Roussef, outra que também toma conta de um colchão bastante recheado (falou na TV, em alto e bom, em coisa de 250 ou 300 bilhões de dólares, não lembro bem), fez coro e disse que o Brasil também tá podendo e quer ajudar. Pois bem, eles e outros que governam países endinheirados de berço ou que subiram na vida recentemente, como é o nosso caso, se unam para socorrer a mãe de todos. Ficar pagando esse mico é que a Grécia não pode. Eu sou insuspeito pra falar, pois não sou grego. Mas, mesmo com toda a difamação atual, ficaria orgulhoso se fosse – já pensou a possibilidade de ser um descendente, ainda que remoto, de Amen-hotep e Nefertiti? Esta, aliás, ocupou as manchetes recentemente ao ser apontada pelos pesquisadores como uma espécie de provável primeira top model da história. Ou seja, até no campo mais frívolo das celebridades Perseu, Acrísio, Hades, Atena e companhia detêm patente. Minha ideia pode ser irreal, provavelmente é mesmo, na verdade não estou nem aí pra isso, nem poderia estar. No mundo da geopolítica global, que é tal e qual o mundo das pessoas comuns no cotidiano, onde na grande maioria das vezes vale mais o que se tem do que o que se é, ironicamente, nós, pessoas comuns, somos todos sujeitos inexistentes. Mas, definitivamente, não dá pra não torcer para a Grécia sair desse buraco. (Os demais não que eu torça contra, mas, para mim, eles que se virem).

A Tragédia do Valete Bar


Como dominava o curto caminho mesmo em hipotética e absoluta escuridão, o que não era o caso, Galdino deslocou-se do quarto até a porta de entrada da casinha simples em poucos segundos. Deteve-se antes de abraçar na mão a chave tosca de ferro desacompanhada de maçaneta devido ter tido a atenção desviada para o que, envolto pela selenita penumbra na qual a salinha quase sem móveis se encontrava mergulhada naquela hora silenciosa da madrugada, imaginou ser um pequeno envelope sendo deliberadamente deslizado pelo estreito vão entre a porta e o chão. A nesga de espaço era suficiente para evitar a ditadura absoluta da treva na silenciosa noite, pois através dela era por onde vazavam, assim como pelas frestas da janela de madeira mal-ajuntada ao lado da porta, umas sobrinhas preguiçosas da luz pálida que o solitário poste da companhia de luz quase defronte à humilde morada melancolicamente emanava.
Abaixou-se para pegar o objeto no exato instante em que o mesmo parou de ser empurrado. O pequeno quinhão de luz permitiu-lhe mesmo perceber, espantado, nítida sombra do que seria uma mão, ou pé, realizando este movimento, mas de tal forma foi grande a curiosidade pelo que também só neste preciso instante identificou como sendo não um envelope, mas uma carta de baralho, que paralisou. Isso mesmo, caro leitor, ali, no meio da madrugada, acocorado ao pé da porta, e na mira de uma carta de baralho, que por algumas particularidades se prometia ainda mais improvável, só agora Galdino se dava conta do caráter absurdo, e quem sabe, até sobrenatural da situação.
Por outro lado, foi justamente esse assalto arrepiante de mau pressentimento e terror que também lhe destravou os membros. Agarrou a carta com uma das mãos e, com a outra, impulsionando o corpo para novamente postar-se de pé, numa esperteza de fibras que há alguns anos já não mais suspeitava em si, retomou a chave e rodou-a em duas voltas decididas, puxou a porta rápido, o frescor da noite tonificado com a brisa soprada pelo mar logo ali, e o que viu lá fora? Nada, absolutamente nada nem ninguém, a não ser as sombras familiares das outras casinhas, seus cercados e canteiros simples, numa ou noutra um eco de luz pontual a denunciar exercícios de vida que não cessam sob o sol ou na ausência dele – o reumatismo de uma velha senhora, a cólica de uma criança cujo organismo ainda se adapta aos malfeitores invisíveis desse mundo impuro, uma moça chorando os desencontros malvados de dois amantes de papel, um casal de carne e osso se amando baixinho, ou brigando, baixinho também.
A tranqüilidade prometida pelas pacíficas sombras da noite era pura ilusão, ele pensou, intuindo de forma inexplicavelmente concreta o pavor invisível que insidiosamente se disfarça com vestes diáfanas. Talvez com o único e cruel objetivo de mostrar que, em um mundo protagonizado pelo poder e riqueza, suas franjas de irritante e desprezível pobreza também podiam se converter em palcos de grandiosas tragédias. E seus viventes – que os senhores e senhoras daquele mundo de excessivas posses, sempre muito cônscios de sua relevância única e claramente herdada de pensamentos e direitos imperiais, por divina decisão adquiridos, numa espécie de bizonha genética social a explicar e normatizar seculares poderes, eram talvez menos que desprezíveis figurantes – na verdade também podiam ascender à condição de atores principais, ainda que num roteiro trágico que mais ignóbil se revelaria por delas furtar o único bem que eram capazes de angariar na vida ao largo das migalhas dos reis – o amor.
Voltemos o plano a Galdino, prezado amigo que nos acompanha no desenrolar desta pérfida história. Peço o favor de unir o indicador e o polegar das duas mãos abertos em “L” e encontrados nas suas extremidades, invertidamente, de modo a fechar o quadro tão somente em torno da sua face transfigurada de assombro e más adivinhações. Não precisará nem mesmo apurar a vista, amigo leitor, pois a luz amarelada que ecoa com brandura do velho poste de madeira quase frontal à casa, e ao qual já nos referimos, permitirá ler com facilidade, nos vincos de conformação cada vez mais acentuados no rosto de Galdino, sua vã tentativa de compreender os extraordinários eventos: sem que soasse batidas à porta, sem ter escutado “ô de casa” como era o costume por aquelas bandas, ou menor ruído alienígena que fosse, encontrava-se ele ali, no meio do que já sabemos ser uma silenciosa madrugada, provavelmente atendendo à inquisição sobrenatural do destino que nem mesmo sabia se era o seu. Sina a qual era e ao mesmo tempo não era a sua, como o leitor comprovará, caso não decline do convite e continue a seguir conosco no descerrar das cortinas e dos atos de uma história que, por honestidade, compreenda desde já o amigo, da mesma forma que sucede a Galdino, terminará em paroxística tragédia de sangue e dor.
Agradeço ao leitor pela decisão de continuar a leitura, e o felicito também: valerá a pena seguirmos juntos até o ponto final, ainda que somente para, lá bem adiante já por completo advogando por nossos pobres personagens, lamentar e prantear o destino adversário e irremovível com o qual foram sorteados. Impõe-se, portanto, com este fito, retomar Galdino, ainda no plano sugerido, ou talvez um pouco mais aberto, mas não demais a ponto de despir a cena do potencial dramático proporcionado pelo rosto de Galdino, à Grito, em plena erupção do vulcão de pensamentos adoecidos que o afligiam naquela hora. Tal evento era, em si mesmo, parte da tragédia anunciada e já iniciada e, para Galdino em particular, uma ou duas cenas anteriores àquela que poria fim a sua existência e ao capítulo intermediário que, com ele, se encerrava dA Tragédia do Valete Bar.
 Via-se Galdino ali, petrificado, à porta de entrada da vexada casinha onde moravam ele, a mulher, Piedade, e uma meia dúzia de minúsculos desejos desses que vicejam nas cercanias da pobreza, imediatamente após recolher o que imaginou em princípio ser um pequeno envelope visivelmente tangido pelo lado de fora, com a mão ou o pé, por um ser misterioso, mas que logo em seguida constatou como sendo uma carta de baralho. Carta esta que, após virar para o lado do naipe, identificou, já favorecido pela luz que escorria lânguida do poste, como sendo um valete de copas esmaecido de velho, mas razoavelmente bem conservado, não fosse um rasgo que, logo percebeu, não era um rasgo de mão, meu Deus – para ele era, isto sim, um furo à bala meio de raspão, que acabou por chamuscar e fender o lado esquerdo da carta.
Um dos príncipes estava desfigurado pelo furo da bala, mas o outro se podia ver por inteiro, ainda que coberto por umas manchas estranhas e escuras que, ao aproximar mais da vista, constatou, aterrorizado, ser, e a menos que estivesse muito equivocado, sangue. Esfregou o dedo sobre uma das manchas, expôs o dedo à luz, trouxe-o em seguida ao nariz, arrepiou-se, era horripilante, ó Deus, mas aquilo era, sim, sangue. Virou a carta em busca de mais pistas, e o que encontrou no verso foi ainda pior, infinitamente pior do que todo o infernal acontecimento até ali. Sobre o traçado de renda típico dos baralhos, nesta carta específica esmaecido de velho, leu a frase também assombrosamente escrita em visco vermelho, sendo ela a sentença que tanto anuncia quanto assinará o ato final desta primeira parte dA Tragédia do Valete Bar.
 “Alvorecerá graça, anoitecerá tragédia”. Galdino leu, releu, leu de novo e de novo a maldição, arrepiou-se mais de uma vez, e então o pior que se pode ter nas tramas sobrenaturais do mal, sobretudo, aquelas que acontecem sob o manto escuro das madrugadas, aconteceu. Sendo este o fato de não se poder ver a abominação, porém, de o sentir em toda a sua insaciável fome de soterrar mentes em porões tenebrosos de terror, e que naquele exato instante apoderou-se por completo da humilde casinha de Galdino e Piedade, convertendo-a de uma vez por todas em negro território de suas malignas depravações.
Num piscar desesperado de olhos, e como num pesadelo sem fim e crescente, sem mover um músculo sequer, Galdino viu-se novamente dentro de casa, a porta cerrada e com isto a semi-escuridão restabelecida, o indicador e o polegar unidos no gesto de segurar algo que seria a carta, mas esta já não estava mais lá. A própria luz melíflua que escorregava pelas inibidas frestas entre a porta e o chão, ou das janelas rústicas, como que antecipando o sinistro desfecho, encantadamente desapareceu.
O quase breu sufocante envolvia tudo, mas não tão completamente que impedisse de acusar entre os dedos pregados, agora ainda com mais força, e entre os quais segundos antes sentiu com toda a continência lisa e fria do papel cartonado de que são feitos os baralhos, o visco encarnado das letras miúdas da frase inacreditavelmente legível sobre a esfinge impassível do valete golpeado e exangue contra a elétrica claridade da lâmpada solitária no poste. Aquilo não era sonho, ele tinha, sem sombra de dúvida, visto o objeto escorregando por debaixo da porta – o objeto que, primeiro pensou ser um pequeno envelope, mas logo em seguida, identificou como um valete de copas; uma carta com sinistras informações, gravadas em tiro e sangue, as quais ele teve a oportunidade de, claramente, decifrar, sob a luz opaca, porém reveladora, que encontrou ao irromper à saída da casa na ânsia de confrontar o silencioso mensageiro, mas nem sinal de alma viva deparando.  
Galdino tinha certeza da realidade de tudo isso, e prova era a clara ideia que lhe ocorreu ao ler a frase homicida e nela intuir outro absurdo, que era o fato de estar escrita de forma tão legível num pedaço de papel já pequeno que é uma carta de baralho, e ainda mais com um rasgo de bala a torná-lo ainda mais restrito para este fim. Ainda que a estampa, desbotada pelo tempo, por outro lado favorecesse o contraste com o vermelho-sangue da escrita. Será que era sangue, meu Deus? Ó, meu pai, e esse príncipe morto de bala e tanto sangue à volta, o que isso significava, Senhor? Galdino seria poupado das desalmadas respostas que no fundo seu coração intuiria apenas poucas horas depois. Já você não, meu caro, aprisionado que já está pelos véus invisíveis que acabam de se projetar no ambiente, numa lúgubre cenografia da imaginação da qual ninguém escapará, sejam seus personagens diretos, ou os indiretos, entre estes o amigo leitor.
O homem voltou para o quarto. Não com medo, mas com uma sensação inédita e opressiva de uma irrealidade vívida, o que era muito diferente e infinitamente mais angustiante do que a provocada por um pesadelo. As ideias iam e recomeçavam do seu início, como um cão correndo atrás do próprio rabo. Tudo aquilo havia realmente acontecido, e isso, antes de entender como repetição, amigo, não é mais que a mente de Galdino completamente estilhaçada pela bala no valete, e à qual o leitor está tendo acesso em suas convulsões finais.
Disso ele tinha certeza por experiências sensoriais táteis, visuais e olfativas inexplicavelmente ainda presentes, e o pior de tudo: não havia a menor evidência de que ínfima daquelas coisas houvesse acontecido. Até porque, de todos os sinais, a esquálida claridade delatada pelo tosco construir de quem nada possui para edificar como teto, e agora lembrada como quase artificial, de tão fugidia, a sombra da mão, ou do pé, empurrando algo por debaixo da porta, algo que por fim identificou como uma carta de baralho, um valete de copas com a inacreditável mensagem escrita em, quem sabe, sangue – de tudo isso a carta era a única coisa não apenas concreta, palpável, mas que tinha tido em sua própria mão com a irrefutável tangência das matérias corpóreas.
Cinco ou seis foram os passos derradeiros do homem que dali a pouco tombaria inerte, vencido pela seta venenosa da infalível mensageira do mundo real acima de todos, com sua foice afiada e preta capa. Já no quarto, sentou-se na borda da cama com o zelo de bulir em ovos para não acordar Piedade, cujo vulto deitado só distinguiu a custo de bem apurar a vista, esta auxiliada pela barriga àquela altura volumosa de mulher grávida imersa em ótimo sono. Por esse motivo, recolheu a meio caminho a mão que avançava para uma carícia, e adormeceu para aquele que seria o seu último sono, ao menos nesta vida.
Do sono mergulhou direto para tormentoso pesadelo. Nele, um valete gigante voava pelo espaço de um lugar que era aquele quarto e ao mesmo tempo não era, pois o farfalhar intermitente de duas cortinas de tiras recobertas de conchas do mar, pendidas no espaço aparentemente do nada, como a provar que as coisas inanimadas também podem fenecer e novamente plasmar em fantasmas nos universos paralelos do terror, anunciava que não. Os príncipes, transmutados em dois bizarros fantoches vivos e desesperados de papel, tentavam da carta se libertar, mas sem sucesso, uma também superlativa bala dando voltas no ar e perseguindo o infeliz valete cada vez mais veloz, cada vez mais forte, cada vez mais decidida, até alvejá-lo, fazendo-o se dissolver no ar e despencar, em caudalosa cascata de sangue, sobre seu rosto. Acordou, coração disparado, um brilho azulado que se oferecia generoso por uma telha de vidro indicando mais um tranqüilo amanhecer na casinha humilde.
Virou para o lado da mulher e ao apurar a vista com o intuito de melhor a contemplar, experimentou nova sensação de absurdo ao constatar, exageradamente grande, a barriga, improvável para os ainda incompletos sete meses – e, conforme ele, para além do mundo dos vivos: como se tivesse dobrado de tamanho entre a hora em que se deitaram e aquele momento, por si só já tão irreal. Desta vez não refreou o impulso de afagá-la, entretanto não teve tempo de experimentar o alívio certo para as inclemências solitárias na madrugada que este ato certamente traria. Mal pousou a mão em palma na barriga da esposa, Galdino sentiu forte chute vindo de dentro dela e, para aumentar o horror, Piedade, nesse mesmo instante, irrompeu em grito lancinante de mulher prenhe quando lhe chega a hora, chama Agripina, chama Agripina, vai, corre, vai nascer, vai nascer, não sei como pois não é a hora, meu Deus, mas vai nascer!
Saltemos o que se pode para o que é por demais urgente: Agripina já dentro do quarto, especialista em parições e doutora daquelas que pouco antes tinham ouvido dizer que os estrangeiros haviam se aboletado na lua, mas como acreditar, meu Deus, ainda mais aquelas pessoas simples, muitas das quais sequer na vida tinham botado o pé num hospital, ou mesmo em lojas de vender televisão? Mas vamos adiante, dedicado leitor, pois a beleza inerente a essa hora é tão somente véu traiçoeiro do destino para o que nos aguarda mais adiante, e que será só lágrimas, mas estas têm lá também sua beleza e poesia, na verdade, estas é que mais têm.
Panelas de água quente, panos em pilha curta e mover-se de quem era do ramo, Agripina confirmou o parto iminente, se era prematuro ou erro de conta, isso se veria depois, sentenciou. Sugeriu que Galdino saísse, esperasse na sala ou no botequim com os amigos, pelo nervoso, ele já acatando a diretriz da parteira quando se pôde perceber novo alto momento, mas não o momento mais grave deste amanhecer cheio de vida e morte na casinha humilde de Galdino e Piedade. São dois, Piedade, são dois! Gêmeos, Piedade, você está parindo gêmeos, olha aqui o primeiro, menino, macho, o choro de sete pulmões se impondo ao júbilo estridente da parteira. Galdino a tudo assistia paralisado, perplexo, assombrosas conexões com os sobrenaturais eventos da madrugada colidindo violentamente com a duplicada felicidade, e então aconteceu.
Exaurida pelo esforço de ejetar o primeiro e insultada por implacável fúria mundo à fora daquele que não era esperado, Piedade reagiu ao espasmo da contratura com involuntário mas violento soco no tamboretezinho colado à cabeceira do leito, acertando em cheio uma pequena caixinha acrílica de cor azul com tampa transparente que silenciosamente jazia sobre o improvisado criado-mudo, junto com uma imagem pequena de santa e um jarrinho de flores de plástico. O impacto foi forte o bastante para fazer o frágil objeto se espatifar e esparramar, umas pelo chão, outras pela cama – uma única e solitária entre tantas cartas que segundos antes se alojavam ordenadamente dentro da tal caixinha pousando sobre a barriga de onde, nesse exato instante, saía o outro, o inesperado. Era esta referida carta um valete de copas, mas este não estava gasto pela opressão do tempo, nem alvejado pela decisão às vezes cega e mortal dos deuses.
Não, este valete era novo em folha, intacto e puro como sempre estivera no ventre seguro e confortável da caixinha de baralho que Piedade ganhara apenas alguns meses antes, em um bingo de quermesse, e a qual mantivera ao lado da cama por puro capricho quase como um enfeite, pois nem ela, nem o marido, eram dados a jogos de cartas, mesmo os mais inocentes. Sendo assim, o valete em questão mantivera-se, até aquele momento, ainda intocado pelo veneno do mal. Porém, é honesto não iludir, e novamente advertir, que impiedosamente o será, ou talvez já até o tenha sido, por cruel ironia, justamente naquele momento, há milhares de séculos projetado, no colóquio dos deuses, para estar entre os mais sublimes. Assim sendo, e por mais que alertado que esteja, aguarde e prepare-se o leitor para o abominável desfecho que o destino irreverente calculou para anunciar, sobre o ventre da mãe covardemente enganada, A Tragédia do Valete Bar.
Piedade recolheu a dor do corpo a um recanto insondável da alma e passou a chorar de alegria, era felicidade demais, oh, Deus. Agripina, antes amiga que parteira, também cedeu às lágrimas, que brotavam verdes e azuis de suas meninas oculares assombrosamente bicolores, era um sinal, era um sinal, e decidiu ali mesmo a ínfima, aos seus erráticos olhos, transgressão, recolhendo fortuitamente o valete sobrenatural ao recato dos seios. Piedade já tivera sorte demais, pensava, enquanto aninhava o segundo menino no braço esquerdo da parturiente – o primeiro já tomara a direita da mãe, sendo que este ali mesmo se tornou Gabriel, anjo por demais reivindicado e aguardado que foi. O outro foi batizado, também ali mesmo e às pressas, contudo com não menos amor, e talvez até ao contrário, Lucas.
Galdino, que a tudo assistia paralisado, mais petrificado ainda ficou com o acontecimento da carta, o qual percebeu em todos os detalhes, e antes de fechar os olhos para sempre ante o peso terrível da tragédia que o príncipe duplicado silenciosamente anunciava, teve a revelação derradeira sobre o teatro de horror que o destino, ou fosse lá quem fosse, escrevera para sua família. No delírio da morte, o pobre homem teve, ironicamente, uma antevisão clara e sobrenatural do tenebroso ato final, mas sobre este nem uma palavra jamais iria pronunciar. Sua parte no horror e, admitamos, amigo leitor, talvez a pior de todas as partes, pois sobre ela começou a ser avisado algumas horas antes pelo fantasmagórico valete por debaixo da porta, chegava neste exato momento ao fim com a síncope cardíaca que o pouparia de assistir ao medonho desenlace, anos mais tarde, dA Tragédia do Valete Bar.
E com o suspiro último de Galdino a compreensão da tétrica realidade, pelo menos naquele momento, também se foi. Piedade sentiu o punhal de perder o marido daquele jeito e naquela hora, o golpe foi tremendo, mas não ainda ao ponto de fazer a mãe perceber que naquele instante o roteiro de infortúnio traçado para sua família silenciosamente se desenrolava. Amparada pela ajuda de amigos, gente que naquelas condições têm o poder de no pouco ser muito, principalmente em forças, Piedade seguiu em frente. Seus dois novos homens invocavam amor muito maior, e com urgências que não lhe deixavam tempo para remoer tristezas. Devastada pela perda prematura da Cristina de saúde malsã como a do pai, via-se e proclamava-se como a mais feliz das mulheres: pedira, suplicara, rogara de joelhos em milho a Deus por um, foi correspondida com dois. Milagrosamente saudáveis, incrivelmente belos, e à medida que cresciam, radiosamente inteligentes. E idênticos como nunca antes gêmeos quaisquer tinham nascido, era o que corria de boca em boca, não raro com certa inflexão de inveja.
Os meninos da Piedade, como diziam, eram tão perfeitos e tão iguais que somente ela era capaz de distinguir um do outro, só ela era capaz de saber quem era Gabriel e quem era Lucas, e isso ela de fato fazia mesmo, até pelo cheiro, pela sombra, ou no mais profundo breu da noite. A bem da verdade: só ela, Piedade, e Agripina, a amiga parteira, que de uma vez tornou-se orgulhosa madrinha dos dois meninos mais bonitos, inteligentes e idênticos de toda a redondeza. E que, alguns anos antes, convicta de que também era de certa forma destinatária das venturas divinas expedidas a Piedade na forma dos dois soberbos rebentos, alguns meses mais tarde recolheu de uma gaveta o valete que havia, na explosão do baralho durante o parto, caído sobre a barriga de Piedade, para lhe dar o destino que considerava justo, mensageiro que era, como já sabe o leitor, de bons augúrios também para ela. Jamais poderia imaginar que, com isto, também estava apenas cumprindo a parte, talvez mais importante, do seu papel no fatídico roteiro – que era preparar o palco para o ato final dA Tragédia do Valete Bar.
Enquanto isso os meninos cresciam, e os assombros deles junto. Inventaram, ali pelos sete, oito anos, os jogos de espelhos, que consistiam simplesmente em postarem-se um de frente para o outro, vestidos iguais, como a mãe fazia questão, repetindo gestos idênticos numa coreografia ensaiada que ao mesmo tempo fascinava e desorientava quem via. Coisa de criança, dizia Piedade, mais para si mesma do que para os outros, e só anos mais tarde, na formatura do colegial, intuiu, ainda que de forma vaga, o demônio que sempre se imiscui por entre as sedutoras ramagens do bem. Naquela noite, Gabriel não dançou a valsa com a parceira previamente definida pela direção da escola, tampouco Lucas. Combinaram a molecagem inocente e bela como eles mesmos, e nem mesmo as moças perceberam, só Piedade, que na proteção do lar, passado o baile, explodiu em reprimenda cuja violência só anos depois, para um deles tarde demais, e pensando melhor para o outro também, se poderia interpretar como uma premonição, infelizmente fugidia demais para evitar A Tragédia do Valete Bar.
Mas aquilo era uma coisa deles. Porque ambos, na verdade e lá bem antes, na poeira das indecifráveis decisões do invisível juiz, eram uma coisa só. Então não havia quem refreasse, nem mesmo Piedade, cada vez mais incapaz para a luta com o feroz em questão, sendo ele o que tinha empurrado por debaixo da porta a tenebrosa sentença, aquele a quem muitos chamam de destino. E, sendo assim, não tinham escolha eles mesmos, e aceitavam como se no chão da alma compreendessem desde sempre a laçadura imoral das sobrenaturais indicações.
Nadava no rio nos passeios de escola este como se fosse aquele, aturdindo professoras e colegas, respondia a prova de geografia aquele por este, e vice-versa na matemática, enfezava-se este de tal maneira com o sorvete servido no sabor errado, que na verdade era o que este de fato apreciava, que convencia ao mais detalhista observador ser mesmo ele aquele que odiava o pistache, sendo que não era nada disso, ou daquilo. Menos Piedade, esta não se enganava nunca, e esta também, por que será, meu Deus, cada dia mais entendia o que, para nós, vendo assim como poesia, podia ser belo, como de fato é, mas para ela era tão somente ignonímia, tragédia e devastação.
No correr dos dias, o enredo tristíssimo e já por demais anunciado se costurava com os alinhavos solertes das mais malditas ciladas, ao passo que da velha máquina de costurar Piedade ia retirando os trocados que dava sustento a Gabriel, o esperado, e a Lucas, o surpreendente. Até que os meninos chegaram ao ponto em que, conforme estava escrito, devia acontecer a desonra do bem, na verdade um pouco antes dessa hora. Piedade os queria médicos, conforme o que prometia a prodigiosa inteligência dos dois, e estava claro que também Deus desejava isso. Entraram juntos para a escola de medicina, e lá conheceram Fernanda. Na verdade, Gabriel conheceu Fernanda, somente no dia seguinte ocorreu de Lucas o também fazer, mas para a moça rica e bela que ia para a faculdade de medicina, e ainda por cima dirigindo o próprio carro, continuava sendo Gabriel, devido o trato irresponsável que para os dois era simples concessão à molecagem dos jogos de espelhos, mas que, para a nossa história, e isso é o que importa e foi decidido muito tempo atrás, era o ato anterior ao que precipitaria o odioso capítulo final dA Tragédia do Valete Bar.
Gabriel, aquele que era aguardado, foi tido como traidor por Lucas, aquele que veio por oportunidade e recebeu na pia o nome de outro santo simplesmente por ser hábito de Piedade recorria aos céus em todos os momentos, ainda mais nas aperturas – ele sempre pensou assim. Era o outro, por mais excessivo amor que Piedade demonstrasse e que todos podiam claramente ver, aquele que não era esperado, sabe-se lá por que, era o mais cercado, cuidado, aninhado, filho amado, amadíssimo. A briga foi definitiva, o cordão invisível que aos dois mantinha enlaçados fendeu-se como diluvial catadupa, um mar vermelho de acusações e rancores ecoou por toda a cercania e trouxe, talvez até como preparação espiritual de Piedade para o repulsivo ato final, inexplicável incapacidade física dos membros inferiores e uma indecente certeza – sim, mais do que as pernas, ali ela tinha perdido os seus meninos, e estes a si mesmos, sendo que isso era o que à pobre mãe mais apunhalava.
Nunca mais se falaram os irmãos, que tão pouco tempo antes eram um só. Dividiram-se em dois e o que era pior, dois inimigos, ódios inclementes aplacados pela intervenção cuidadosa mas incompreendida de Piedade, que amava mais Gabriel do que Lucas, na verdade que amava só Gabriel, conforme tinha certeza este último e também por isso o levava a pender para seu papel no roteiro, aquele lá, que já estava escrito desde a madrugada sombrosa no valete furado de bala deslizado pelo vão da porta, fato horripilante cujo motor reverberará para todo o sempre, qual um maligno felino das trevas eternamente correndo atrás do próprio rabo, e o qual estamos prestes a desvendar.
Gabriel entendeu-se com Fernanda, amavam-se de fato, assim como à anatomia. Já Lucas, este não, com trincados indeléveis de nascença, ali partiu-se vez. Não era mais o exemplar aluno de medicina, cresceu o cabelo, a barba escureceu o semblante refletindo a tristeza da alma, deu até para beber e jogar carteado, refugiado que se viu nas facilidades do álcool e dos braços voluptuosos de Walquíria, linda como ele, à esquerda da vida como ele, ofendida e disposta a reparar o que de injusto tinha padecido, como ele. Conheceram-se num bar desses que proliferam nas bordas de cais de portos, e não era diferente ali nas imediações daquele onde Piedade e seus meninos moravam perto. Sim, ali perto daquele cais havia vários bares assim, mas aquele era sempre o mais cheio, pois, mesmo já nas mãos do segundo proprietário, mantinha fama de bebida e comida farta por preço barato, além de outras atrações caras aos gostos e desejos de seu público cheio de histórias de mares e de vidas errantes.
Com isso chegamos praticamente ao último ato da tragédia anunciada pela carta de copas com os príncipes invertidos, um deles golpeado de morte pela bala, a qual já neste momento começa a se despedir do trabuco de Mata-Carta para evoluir, em disparada carreira, rumo ao coração do menino da Piedade. Rumo ao seu coração também, leitor. Aqui, breve hiato para apresentar Mata-Carta, também personagem importante, principalmente por ser impossível sem ele cumprir-se o ato derradeiro dA Tragédia do Valete Bar.
Marinheiro mercante com posto de serviço sempre entre os mais rudes, a cada um Mata-Carta contava uma história diferente sobre si, podendo todas terem fundo de verdade ou nenhum, o que não importava: descrédito por parte até mesmo dos seus pares mais próximos era o que não faltava ao degenerado, posto que além de ser exímio nas artes do baralho, também o era no nos feitiços de blefar. Para cada cicatriz no corpo, e conforme o interlocutor, uma história. Mas, com as cartas nas mãos, também ele era um príncipe da ética. Jamais trapaceava, e o que se dizia era que nem precisava – quase sempre levava a melhor com os adversários. Lado contrário, também era implacável: entre as muitas versões para as tais cicatrizes, dava-se como certo, entre as testemunhas mais ilibadas, que várias das tais foram adquiridas nas três ou quatro vezes em que já tinha mandado para o inferno um safado trapaceiro.
O que nos traz de volta Lucas. Beberrão, atrevido, desbocado, dado a malícias e, com especial fervor, aos jogos de cartas, namorado e quem sabe rufião de prostituta, Lucas, belo como só ele e Gabriel, bem lá no fundo não era nada disso. Walquíria, por sua vez, era mulher igualmente linda e de sentimentos, mas como culpados dessas dissenções eram vistos e apontados. Uniram-se, pode-se dizer assim, em um tipo de amor cheio de volúpia e excessos, como é típico dos que se imaginam, ou são mesmo, rejeitados. Enquanto Gabriel ia cada vez melhor nas medicinas, Lucas mais afundava – no vício, na execração moral, nas dívidas de jogo. Duas das quais com Mata-Carta, e bom dinheiro em jogo, pois nisso de correr risco ambos eram mais parecidos do que o jovem desgarrado com o gêmeo bom. Piedade, aliás, já ciente dessas perigosas inclinações de pensamento do filho, suplicava pelo perdão divino, e em seu peito por agora só havia leito para a dor pela deriva cada vez maior de Lucas, o que enganosamente se presumia enjeitado.
A prisão na cadeira de rodas aterrorizava, mas muito menos do que o irredutível cisma entre seus meninos. Quando soube do desafio (que o leitor tomará conhecimento a seguir), pensou que ia morrer, e você concordará que melhor teria sido assim. Mata-Carta, farto das protelações do incorrigível malandrinho, chamou-o às falas: olha cá, rapazinho sem-vergonha, já despachei mais de cinco (sabemos que mentia, podia ser menos, mas também podia ser mais) do seu modelo para o inferno, mas nunca na covardia, por isso vou lhe dar a chance de decidir num carteado do tipo tudo ou nada, você ganhando tá perdoado de tudo que me deve, mas eu ganhando você tem de me pagar centavo por centavo, e ali, na hora.
Foi a festa dos abutres naquela região de cais já em si mesma tão derrotada em seus desejos de amor pacífico a que todo ser vivente tem direito, mas não os feridos de alma que, quem há de acusar ou julgar, infestavam aquelas beiradas de cais esquecidas em suas humildades e mazelas. O desafio de Mata-Carta tornou-se a grande notícia, todos só falavam nisso. Secretamente, ou nem tanto, a esperança abjeta de muitos, a maioria mesmo, era que o moleque beberrão, indecente e sem moral, pagasse, na mesa de jogo, perante uma platéia sedenta do sangue de um cordeiro qualquer, o crime mortal de ser tão puro em sua beleza de corpo e, sobretudo, de alma. Desafortunadamente, o filho de Piedade que sempre se vira como o inesperado, o segundo, o mal-amado, assim jamais se percebera, e com a proximidade iminente dA Tragédia do Valete Bar, muito em breve certamente não haveria mais tempo para isso.
Todos ficaram sabendo, todos só falavam do tal jogo. Gabriel não deu ouvidos, não dizia, mas queria que Lucas pagasse pelas escolhas erradas, só não poderia imaginar que fosse tão caro o preço. Piedade juntou o quase nada de ouro que possuía, as alianças dela e de Galdino, um broche em forma de passarinho que ganhou da avó na primeira comunhão, mais o cordão fino com plaquinha onde se lia “Cristina” e implorou, em seu desespero de mãe que antevê a perda do filho jamais indesejado e mil vezes multiplicado pela impotência das pernas, para que Gabriel corresse lá, se antecipasse ao sem juízo do irmão e apaziguasse Mata-Carta com o pequeno tesouro. Gabriel nem sequer olhou para a mãe, que talvez sob a tortura indescritível do estampido que já neste momento lhe estuprava os tímpanos, adormeceu de dor e para sempre dos discernimentos absurdos desse mundo. Despertaria louca algumas horas mais tarde, sob o peso da ultrajante notícia, e tanto melhor assim, concordará o leitor, a quem igualmente só resta aguardar o impiedoso desenlace dA Tragédia do Valete Bar.
Lucas já tinha ganhado algumas apostas com Mata-Carta, era um dos poucos a ter feito isso, e mais de uma vez, aliás. Contudo, gaiatinho cada dia mais esperto que era, também amparou-se nos truques que às pressas aprendeu com outro calejado marinheiro, a quem em suas angústias Walquíria tinha recorrido, sendo assim todo pimpão e confiança no começo do jogo. Os urubus em volta bebiam e fumavam, também gargalhavam e proferiam indiretos insultos, infelizmente certeiros demais em suas premonições. Nem mesmo a luz desmaiada das duas únicas lâmpadas que reticentemente iluminavam o local se mostravam cúmplices dos planos de Lucas de sabotar Mata-Carta, que, vigilante e implacável, liquidou a partida em três ou quatro lances. Ninguém percebeu, pois como sabemos, a luz era de pouca coragem, mas o nosso menino empalideceu. Não tinha dinheiro, por isso tinha de pensar rápido, e pensou.
Aproximando-se de Mata-Carta num gesto de surpreendente intimidade, praticamente lhe colou a boca na orelha e disse num cochicho somente aos dois compreensível que precisava ir ao banheiro para tirar o dinheiro do bolso e, na volta, lhe entregar discretamente, pois tinha apenas o suficiente para isso e não queria ouvir desacatos de outros pulhas covardes aos quais também devia e que se amontoavam ali, um bando de ratos que tão somente espreitavam a menor oportunidade para o humilhar, ridicularizar, e isso não aceitava. Mata-Carta até surpreendeu-se, admirando, sem demonstrar, obviamente, a viril demonstração de hombridade do adversário. Mas advertiu: que este não tentasse escapar, pois ele estaria de olho na porta, a qual, em seu favor, era a única por onde se entrava e se escapava do Valete Bar. Lucas levantou-se e, em no máximo cinco passo, fez soar as tiras adornadas de conchinhas do mar da cortina que conferia certa privacidade a um pequeno vão onde se encontrava uma pequena pia e, ao lado desta, a porta do mictório propriamente.
Precisava achar uma saída para a situação, nosso desajuizado menino pensava, enquanto olhava as paredes quase indevassáveis do pequeno banheiro, se não fosse uma pequena janelinha de vidros quadrados no alto, por onde era impossível passar até um gato mais encorpado, imagine-se um rapagão cheio de substâncias como ele. Pensava aflito nisso enquanto, do lado de fora, Mata-Carta se redobrava em vigilância, a qual negligenciou apenas por alguns poucos segundos, necessários para pedir mais uma dose ao homem dentro do balcão, mas também suficientes para gerar a situação que lhe iludiu os olhos, precipitando, nesse exato instante, e por fim, amigo leitor, A Tragédia do Valete Bar.
Entre o gole na dose recém-servida e novo farfalhar das tiras da cortina, Mata-Carta viu o que imaginou sendo Lucas se aproveitando de seu átimo de desatenção para escapar pela porta de saída do bar, a qual ficava a poucos metros e praticamente frontal ao vão de acesso ao banheiro. Tomado pelo ódio cego dos justiceiros que não acreditam ou simplesmente desconhecem a justiça dos códigos e tribunais, sacou a arma de cima da mesa e disparou. A bala talvez ainda não tivesse atingido o coração do filho de dona Piedade quando ele percebeu o erro fatal, mas era tarde demais.
“Ei, calma aí, minha mãe mandou eu vir te pagar, cadê o meu irmão?”, gritou inutilmente Gabriel logo após irromper no recinto, fazendo soar as tiras barulhentas de cortina idêntica à que cobria o acesso ao banheiro, só que esta na entrada do estabelecimento, com o intento de tornar mais resguardado o lugar, ou talvez  apenas de deixar mais bonita a fachada, mas isso não tem a menor importância neste momento de aniquilação e horror. Os irmãos siameses tinham sido separados pela insídia dos sentimentos e desejos, mas para quem os via só na aparência continuavam sendo um só, de tão idênticos, e foi isso que iludiu Mata-Carta – a raiva tornando ainda mais turva a vista já comprometida pelo álcool e pela luz tíbia do ambiente. A bala já tinha atingido o coração inocente de Gabriel, nosso também muitíssimo amado menino Gabriel, o assassino se pudesse a recolheria de volta ao tambor, mas não podia.
De dentro do banheiro Lucas ouviu o clamor desesperado do irmão, mas também para ele foi muito tarde. Conseguiu, no entanto, sair a tempo de ver da mão direita de seu gêmeo, provavelmente em um espasmo involuntário provocado pela agressividade da bala, se esparramar pelo ar as alianças, o broche e o singelo cordãozinho de ouro com a plaquinha onde se lia “Cristina”. Objetos que, já na rua e depois de remoer a súplica da mãe, Gabriel voltou em casa para pegar e correr em socorro do irmão, porém encontrando Piedade já adormecida pela dor entorpecente da tragédia que seu mortalmente ferido coração de mãe antevia.
Para consumar a profecia, infelizmente, também para o muito provavelmente ótimo médico que viria a ser, se não fosse o hediondo destino – para Gabriel, igualmente, já era tarde demais. Ferido da morte que inundou para sempre de doloroso negrume a noite recém iniciada, o bom rapaz só não tombou no chão humilhante porque lhe ampararam os braços de Lucas, o qual chegou sustentando por trás o irmão praticamente no exato instante em que o desgraçado projétil atingiu seu coração – e, sinceramente, nunca será demais repetir, todas as lágrimas deste mundo serão nada para prantear nosso muito, muitíssimo amado menino Gabriel.
Lucas começou ali a se consumir no baque aniquilador da bala que fez o corpo de Gabriel e também o seu próprio estremecer, pois, como já expliquei, leitor, este grudou-se naquele por trás no exato instante que o projétil atingiu-lhe o coração. Nos dias que se seguiriam, este, aliás, era um dos aspectos mais sinistros e comentados da tragédia: a sorte de Lucas, pois se menos robusto fosse Gabriel, a bala talvez pudesse ter lhe trespassado as costas e se alojado no peito do outro irmão, também lhe atingindo o coração e o matando.
Mas como se poderia chamar isso de sorte? Ainda mais com a aterradora reação de Piedade, ao saber da morte do filho? Esta sim, talvez, viesse a ser recebida com poder devastador muito maior do que o de qualquer bala neste mundo, como em alguns segundos o leitor, pesarosamente, comprovará com seus próprios olhos. Como se já não nos doesse por demais assistir a tudo impotentes – um príncipe alvejado no coração, desabando para o sempre da morte nos braços do outro, o seu duplo -, será que este também não estaria desabando junto, nesta queda da qual não se levanta?  
Enquanto o som seco do estampido ecoava para além dos espaços conhecidos a ignonímia daquele horror, o qual faria uma enlouquecida Piedade esconjurar e renegar Lucas, a quem para o resto da vida passou a abominar, convicta em seus delírios de que este era o filho Gabriel que se recusou a ir em socorro do irmão, fato que contribuiu para tornar a vida de Lucas uma morte ainda pior do que a do seu espelho, um segundo estampido, talvez motivado pelo choque de Mata-Carta ao se dar conta da tragédia que tinha de certa forma involuntária provocado, se fez mais uma vez ouvir no desgraçado ambiente.
Este último tiro, por ser a esmo, ricocheteou na parede por dentro do balcão e repercutiu numa pequena prateleira postada do lado contrário a ela, onde, entre garrafas de bebidas, maços de cigarro e outras quinquilharias, também repousava uma taça transparente, onde tinha aportado, dos seios de uma mulher tão antagônica em si mesma a ponto de possuir um olho verde e outro azul, um valete de copas que ela julgara mensageiro de fortunas, e que mesmo depois de já não ser mais dela o estabelecimento, ali fora mantido, simplesmente porque isso estava escrito no baralho invisível do destino.
Varado pela bala, o copo se desfez em incontáveis caquinhos, já a carta, acertada apenas de raspão, voou pelo espaço até cair no chão ao lado dos dois irmãos, um morto e o outro em convulsivo desespero – e tão perto do valete real pousou o de papel que acabou sendo atingido por respingos do sangue e das lágrimas que do primeiro vertiam. Sem que ninguém percebesse, o que seria até compreensível devido o alvoroço que se instalou no palco da tragédia, um senhor muito distinto, de barba e cabelo bem aparados, e trajando paletó escuro, recolheu a carta e saiu discretamente do local.
Já fora do recinto, o homem voltou os olhos para a placa acima da porta de entrada do estabelecimento, na qual se lia em letras graúdas e vermelhas, ao lado de um tosco valete de copas pintado à mão, a inscrição “Valete Bar”. Sem que se pudesse ver caneta ou lápis em sua mão, manipulou a carta como se nela escrevesse alguma coisa. Terminada a ação, mirou de novo a placa e, ato contínuo, a rua, e decidido caminhou algumas quadras na noite surpreendentemente tranqüila e – derradeiro dos absurdos, mergulhada em madrugada que o canto distante de um galo acusou – até se postar à porta de uma casinha humilde entre tantas outras.
Abaixou-se e começou a empurrar o valete maldito por debaixo da porta. Ao mesmo tempo em que Galdino, sem jamais entender como tinha sido acordado e muito menos atraído para a entrada da casa, com todo cuidado de quem tem uma esposa grávida dormindo o sono tranqüilo das mães em sua prenhez de felicidades, vencia a quase escuridão e vislumbrava, um tanto surpreso, incerto objeto sendo introduzido por debaixo da porta. Objeto este o qual primeiro considerou ser um pequeno envelope, mas rapidamente identificou como sendo um valete de copas furado de bala, com manchas e uma tétrica frase escrita no verso, tudo parecendo sangue.